Do amor à algumas miudezas, por Diego Santos




Uma via pública, um cruzamento digital, eis que em amor se cruzam velhos companheiros conjugais que na memória das redes sociais reproduziram certa vez votos de um amor eterno, cheios desses nuances de selfies em lugares paradisíacos, exóticos, praças e eventos, no bar, com aquele prato temperado de tira-gosto, a cerveja gelada e uma partida de futebol ou karaokê, agora o quê? Não mais que o desgosto do desencontro e a promessa de um novo ou mesmo amor, que só se vende...
Certo, descemos das nuvens, poupar-nos-emos dos vícios dos nossos dias, ainda conectadas que separemos este caráter próprio de vitrine do amor que sentimos ou sentiremos. Ah sim, e nós conhecemos os perigos, blindamos as relações com o brilho da realidade, não há fotos ou declarações espantosas de uma eternidade breve, somente as indiretas, um vídeo, uma música, uma tendência que a outra siga, estabelecemos este tipo de contato, uma comunicação de lances e subentendida, onde só os mais íntimos conhecem, a tudo quanto for fora, o mistério da relação a dois.
Não temamos, vamos mais abaixo. As relações brutas, aquelas que a nossa educação deixou para trás, as que se encontram nos níveis marginalizados, o amor dos pescadores, dos feirantes, dos carregadores de cargas, dos caixas de supermercados, os trabalhadores da construção civil, dos motoristas de ônibus, dos ambulantes, dos seguranças de casa de shows, dos assalariados, das pessoas que sol a sol se esgotam na cruel sobrevivência do mundo cão, elas também amam e nos seus dias rápidos também exprimem, ainda que não digital-socialmente esta necessidade de paixão, este dito amor que nem assim o classificam. É a mulher esperando no final da linha, são as festas de segunda-feira, são os divertimentos sabe-se em qual gueto, com qual aparelhagem ou companhia, todavia, todos na mesma sintonia, não há juras ou agonias, só dança, papo direto e curtição, na insólita faculdade a qual seu cotidiano lhes encarcerara este tipo de exposição é desnecessária, quando feita é ignorante (como quase todo tipo de exposição é, até esta), vivem o preço do quase imediato e não há meio termo, nem vendem falsas juras e expectativas, ou é ou não é, não há pintura, nem coraçõezinhos, o que há depois eu não sei, conjecturo mas não quero falar.
Sim, poderia julgar frívolo todo este tipo de paisagem porque o amor jurado as pressas ou as escondidas ou não jurado também deixa de ser amor algum dia até quando não deixa de ser amor. Expliquemos: veja bem, com que graça alguém dirá “amor meu” a outra pessoa quando o disse a antiga que de amor se escafedeu? Com que amor pungente abraçamos um amor diferente numa pessoa que racionalmente se escolheu? Ah sim, somos iguais e naquele determinado momento estamos juntos, o depois quem sabe? Não mais! Todo aquele amor vira palavras jogadas ao vento, lançadas a nuvem, trovejadas nas batidas tecnomelody.
Então se o amor acabou, mas não acabou, deixamos vestígios escancaradamente silenciosos: um like solitário, postagens de amizade, uma disposição fantasmagórica de apoio ao que quer que a outra esteja apoiando e, de desvelada maneira, todos estes rastros são quase um tributo ao amor outrora sentido, uma masturbação ordinária com cara de efeitos em reações digitais; nos encontramos em parques e eventos culturais, partilhamos costumeiramente as coisas de antes com a vedada impressão de arte do que não podemos mais, e vai-se transformando em amizade por não querermos largar, porque aquela imagem nos remete a um resquício prazeroso de amor, mantê-lo por mais que caro é melhor que  a miséria inevitável do antigo estado; pior, fica-se entremeios e nada mais, vê-se a outra com outro, vai-se ficando todos com todos porque nenhum quer encarar essa mesma verdade dos demais.
Se o amor acabar mesmo: ríspidas e insólitas declarações ao amor jurado, subitamente transformado em revés, apaga-se a página, bloqueia-se o contato, as circunstâncias triviais são denotadas e tudo desmorona sem controle, desesperados, tecem-se desculpas ao fracasso: ela não gostava disso, ele não fazia aquilo, são tantos desgostos apontados a perfeição que é difícil não pensar que tudo não estivesse guardado no interior a sete chaves. Quando são silenciosos pior, faz-se que não existiam e toda essa amargura é engolida e não digerida, corre-se o risco de arrotar na próxima da fila, é um desastre apesar de sempre polidas as confissões.
Já não falo de amor, carinho, não falei aqui de nada disso, como posso falar se não conheço? Sou ignorante como todos os outros, a base de toda essa construção irascível que enfeitamos por pura conveniência, puritanismo, hipocrisia, parte da parte à qual não admitimos que a natureza não se rende as conveniências do pop, das ideias, das filosofias a qual nos apropriamos no percurso, das verdades que abraçamos, das justificativas que damos as nossas escolhas: são uma só, afinal se não fosse porque erraríamos? Todo nosso amor só é gozo. Nada mais.
Deixei de ver muitas coisas por falta de paciência, clareza ou pelas próprias limitações inerentes a condição de expositor, se sentiu que escrevi como se não fizesse parte não deixa de ter sua razão, por isso o próximo parágrafo não sou eu quem escrevo, é você minha cara e meu caro, que certamente se revoltará, mas não fique envergonhado, estaremos sempre abertos e compenetrados ao diálogo. Até mais.
*Pintura de Edvard Munch "A criança doente"
* Diego Santos é acadêmico do curso de letras da UFPA, rpgsta, boêmio e meu amigo. 

Comentários

Postar um comentário

Gostou? Deixe um like do G+, comente, divulgue, sua crítica também é bem vinda ;)